Texto – provocação abril 2023
O texto -provocação aqui apresentado foi composto a partir da autobigrafia de Alexander S. Neill publicada pelo Fundo de Cultura Econômica, em 1976. Versa sobre a história de um professor formado pelo modelo artesanal entre 1898 e 1902 e tem relação com a exposição abril/2023 – As escolas primárias anexas à Escola Normal da Bahia no Império e na República. Disponível em https://modosdefazer.org/?page_id=31916
As peripécias de um aprendiz de professor entre os anos de 1898 e 1902 1
— Esse menino não tem remédio, afirmou meu pai com tristeza.
— Poderia ser professor, aventurou-se a dizer minha mãe.
— Só serve para isso, afirmou meu pai tristemente […]
(NEILL, 1976, p. 60)
Quando eu tinha catorze anos, meu pai decidiu que eu e Neilie [meu irmão] devíamos trabalhar. […].
Sentia-me envergonhado de trabalhar em um comércio de varejo, e me escondia atrás das estantes, se algum rico passava em frente à loja. Eu odiava o negócio da venda de tecidos. Permanecia de pé desde as sete e meia da manhã até às oito da noite, logo devia percorrer três quilômetros de volta para casa.
Meus dedos dos pés pioraram tanto que logo tive de abandonar o emprego. Fiz isso com alegria, e garanti a meu pai que tinha tomado juízo e que me escravizaria para preparar os exames para a administração pública. Minha concentração não havia melhorado nada, e, pela terceira vez, meu pai se desesperou.
[…]
Quando meu pai renunciou, minha mãe se ocupou de meu destino [e disse a meu pai]: “George, realmente necessitas de um aprendiz de professor”.
Fui nomeado aprendiz de professor na escola de Kingsmuir. Trabalhei como aprendiz quatro anos. Tenho dificuldades em recordar dessa época. Certamente dava aulas para ajudar a papai, porque lembro que ensinava a pequenos grupos de meninos e meninas a ler através do método de olhar e dizer o nome [ler e recordar, ou seja, memorizar, decorar].
Descobri que a melhor maneira de aprender é ensinar e logo pude dizer de memória os nomes das nações, os cabos e os rios de todo o mundo e também citar as exportações do Peru e as importações da China. Creio que aprendi bem minha profissão porque imitei a meu pai, e ele era um bom mestre: sabia fazer o aluno pensar e não o enchia de conhecimentos.
Eu ainda não agradava a meu pai, que se sentia inclinado a me tratar mais como aluno do que como mestre. E embora não me golpeasse na frente de meus alunos eu ainda tinha medo dele.
Depois de dois anos de trabalho, o aprendiz escolar podia apresentar o seu primeiro exame […] Ao final de seus quatro anos de trabalho podia submeter-se a um exame para ingressar na Escola Normal que decidiria se podia ser estudante normalista ou não. O que era aprovado com uma qualificação de primeira classe, automaticamente passava a ser aluno normalista e estudaria dois anos em Glasgow ou em Edimburgo. Se existiam vagas suficientes, o aspirante com uma qualificação de segunda poderia também inscrever-se na Escola Normal. Se alcançava uma qualificação de terceira classe, estava totalmente desqualificado.
O exame que me fez o inspetor ao terminar o meu segundo ano não resultou muito brilhante. Seu relatório dizia: “Comunique-se a esse candidato que seu trabalho não é satisfatório”.
Ao fim de meus quatro anos como aprendiz, obtive uma qualificação de terceira classe nos exames para a Escola Normal. Fiquei quase no final da lista dos alunos examinados. Tinha então 19 anos.
Não recordo bem minha época de aprendiz de professor, porém nas fotografias dos grupos escolares apareço de pé, muito rígido e com um colarinho duro e muito alto. Creio que minha posição era difícil, porque devia estar ao lado da autoridade, quando ainda não tinha superado o desejo de brincar. Meu papel era de um menino que simulava ser homem.
Quando terminou minha aprendizagem, solicitei emprego e finalmente consegui um, perto de Edimburgo. A escola era dirigida por uma senhora idosa; parecia uma águia e aplicava uma disciplina muito severa a seus alunos. Depois da liberdade relativa que havia na escola de meu pai, me transtornou muito encontrar-me em uma escola em que não era permitido aos alunos falar em classe. Ordenaram-me que golpeasse a qualquer menino que murmurasse, e eu o fazia porque realmente a velha me assustava. Permaneci dois meses ali. Depois consegui um emprego melhor, em Kinskettle, ganhando 60 libras por ano.
A nova escola era mais severa. Durante três anos fui um severo capataz. A sala de aula de Calder, o diretor, estava separada da minha por uma divisão de cristal, e seu olhar penetrante podia ver qualquer coisa que sucedesse. Durante três anos fiz meu trabalho com medo. […] Não se ouviam risos na escola, exceto quando Calder fazia uma de suas brincadeiras às custas de um aluno. Todos os estudantes se moviam no estilo militar e todos, inclusive eu, eram hipócritas, desumanos e covardes. Em Kinskettle sempre fui considerado um estranho.
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- Texto extraído de Santana, Elizabete. Autoformação: Caminho, compromisso e luta dos profissionais da educação.
SOBRE ALEXANDRE S. NEILL
Nascido em 17 de outubro de 1883, em Forfar, Escócia, Neill tornou-se, em 1898, portanto aos 15 anos, aprendiz de professor na escola regida por seu pai que era diplomado na Escola Normal. Viveu por quatro anos o modelo de formação no qual um mestre-escola de povoado iniciava seu filho na prática de ensinar, reproduzindo seu modo de ser professor. Anos mais tarde, depois de transitar por várias áreas de trabalho, Neill liderou um movimento que defendia a “liberdade na escola“, escreveu livros entre os quais Liberdade sem medo e Diário de um mestre e criou a Escola de Summerhill (Summerrill School) que funciona, até os dias de hoje, dirigida por sua filha, Zoë Neil.
SOBRE A FORMAÇÃO DE NEILL
1. MOVIMENTOS E TEMAS DOMINANTES NOS PROCESSOS DE AUTOFORMAÇÃO DE A. S. NEIL Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 41-56, jul./dez., 2005 artigo movimentos A.S.Neill
2. Elizabete C Santana – NEILL Do credo de Gretna Green à experiência de Summerhill ou acesse REVISTA HIPÓTESE VOLUME 3, NÚMERO 2, 2017 p. 113-130.
NEILL, Alexander S Autobiografía. Neill! Neill! Orange Peel! 1.ed. em espanhol. México; Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1976.
SOBRE A ESCOLA DE SUMMERHILL
https://www.summerhillschool.co.uk/
Quais os princípios da Summerhill, a escola democrática mais famosa do mundo?…publicado por ANA LUIZA BASILIO em 30.08.2018 na Carta Capital. https://www.cartacapital.com.br/educacao/quais-os-principios-da-summerhill-a-escola-democratica-mais-famosa-do-mundo/
VAUGHAN, Mark et al. SUMMERHILL E A.S. NEILL: a escola com a democracia infantil mais antiga do mundo.Trad. Maria Lucia Ricci Leite. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011
VEJA FOTOS DE ALEXANDER S. NEILL

Neill em sua fase de aprendiz de professor.
Fonte: Disponível em: http://www.summerhillschool.co.uk/pages/photo_gallery.html
Acessado em: 22 jan. 2005
