Ismael Lage Pitanga[1]
O espaço urbano dos municípios do estado da Bahia, em particular, da cidade de Salvador, é marcado por “nomes históricos” em diversos patrimônios e espaços públicos como ruas, praças, escolas, estádios, avenidas, faculdades e hospitais. Sendo a denominação do patrimônio público umas das formas de historicizar sujeitos, acontecimentos, datas importantes e de demarcar o que deve ser perpetuado na memória da sociedade, os nomes selecionados definem quem deve ser lembrado e, consequentemente, determina os que devem ser silenciados. Pretendemos neste texto, refletir brevemente sobre o silenciamento de professores negros na chamada historiografia tradicional. Além de analisar o processo de apagamento histórico da memória sobre sujeitos que atuaram na educação durante o Império e início da República na Bahia, discorremos sobre a ausência de seus nomes em espaços públicos, particularmente em escolas, em contrapartida à evidência dada ao nome de políticos e governantes baianos do século XX.
No dia 27 de novembro de 2020, uma publicação do Diário Oficial do município de Vera Cruz-BA, Ilha de Itaparica, alterou o nome da Escola Municipalizada Carneiro Ribeiro, nome de um dos principais educadores negros do estado que atuou entre o século XIX e XX, para Centro de Educação Infantil e Alfabetização. A situação em questão exige uma reflexão acerca do processo de apagamento histórico da memória desses sujeitos. (1989) pontua a partir da análise dos trabalhos de Durkheim e Maurice Halbwachs que a força dos diversos pontos de referência da nossa memória coletiva, se estabelece através dos “lugares de memória”, entre eles, os monumentos, as datas, personagens históricos, o patrimônio arquitetônico e as tradições culturais. As referências da memória coletiva se fundamentam na “Memória Oficial”, que definindo o que deve ser comum a um grupo e estruturando-se em hierarquias e classificações diferenciadas faz com que se estabeleçam sentimentos de pertencimento, como também, fronteiras socioculturais. Nesse sentido, o próprio silêncio (dado ausente na memória) estaria relacionado à ideologia e interesse da “memória oficial”.
Apesar do apagamento da memória histórica sobre educadores negros que atuaram durante o século XIX e início do século XX, pesquisas no campo da historiografia social da educação voltadas para o estudo de professores que exerceram na Bahia o magistério durante esse período e do processo de escolarização da população negra vêm avançando nas duas últimas décadas. Livros, teses, dissertações e artigos realizados por Ione Sousa, Jaci Menezes Ferraz, Daiane Silva Oliveira, José Carlos Augusto Silva,Ian Cavalcante, Jucimar Cerqueira dos Santos, Fabiano Moreira da Silva, Antonio Barbosa Lisboa e Grupo de Pesquisa em Educação e Currículo – GPEC evidenciam atuações e trajetórias de diferentes sujeitos que educaram e instruíram em diversas condições e espaços na Bahia Imperial e Republicana.
Quantas escolas fazem referência a esses educadores já tratados pela historiografia? Existe relação entre o apagamento desses professores e o silêncio produzido pelas produções acadêmicas? Há um processo de apagamento e invisibilidade atual em relação à memória de professores negros? Por que apagar o nome Carneiro Ribeiro de uma das Escolas da rede municipal de educação de Vera Cruz-BA? Quantas escolas levam o nome do professor negro Cicinato Franca? Quais referências temos sobre as contribuições de outros professores negros como Cosme de Farias, Elias Nazareth e Francelino do Espírito Santo de Andrade? Pontuamos aqui, que esse processo de apagamento ocorreu também através da “historiografia tradicional da educação” que silenciou acerca da presença negra na educação (FONSECA, 2008), e que somente nas últimas duas décadas as pesquisas nesse campo tem avançado.
Quantos prédios escolares temos com o nome de Elias Nazareth? Elias Nazareth foi um importante professor negro que se preocupou com a educação das camadas populares e ocupou relevantes cargos, como o de Diretor da escola Normal. E com o nome do intelectual negro, o professor de desenho Manuel Querino, fundador do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e da Escola de Belas Artes? Por que não trazer à memória as professoras Maria Olympia de Oliveira e Hermelinda Valeriana dos Santos, responsáveis por abrir escola noturna para mulheres, inclusive na condição de ingênuas e libertas? (SANTOS; SILVA; SANTOS, 2020).
Necessário também pensar na importância da trajetória de outros educadores baianos do período, como o professor Francisco Bernardino de Sousa e da professora Maria Gomes Piedade da Costa, fundadores de escolas particulares em Salvador durante o século XIX que tiveram atuações relevantes, porém ainda pouco tratadas pela historiografia.
A invisibilidade dos negros como professores e na educação em geral foi explicada pela negação a esse grupo de oportunidades de escolarização durante o século XIX. (ROMÃO, 2005). Outro argumento indicou que o acesso à educação estaria limitado aos filhos das famílias abastadas, o que teria deixado os negros fora da escola, até a metade do século XX (VEIGA, 2008).
Marcus Vinicius Fonseca (2008) ao analisar a presença do negro em obras clássicas da historiografia da educação no Brasil sinalizou que uma abordagem tradicional da história da educação também se limitou a negar a presença do negro nos espaços escolares do século XIX.
Entretanto, os avanços nas pesquisas dos últimos anos apontam não somente para a presença negra na educação, como também para o seu protagonismo à frente de escolas públicas e particulares (BARROS, 2018). Educadores negros estiveram preocupados com a educação dos pobres e/ou tiveram participação importante no mundo das letras e nos diferentes espaços públicos, no contexto de luta pelo fim da escravidão e do pós-abolição (SOUSA, 2006).
Observamos que, para além do silenciamento historiográfico, figuras importantes do Império e da República tiveram suas memórias apagadas. Em contrapartida houve a “perpetuação” dos nomes de antigos políticos em escolas e uma permanente disputa e reivindicação dos grupos políticos hegemônicos por esse lugar de memória. São evidências disso as críticas que deputados do partido Democratas (DEM) e o ex-prefeito de Salvador Antônio Carlos Magalhães Neto fizeram às portarias que redefiniram o nome de cinco escolas que homenageavam alguns membros da família Magalhães publicadas no Diário Oficial do Estado da Bahia no dia 23 do mesmo mês e ano em que ocorreu a mudança do nome da escola de Vera Cruz/BA.
Antônio Carlos Magalhães e seu filho Luís Eduardo Magalhães juntos nomeiam 18 (dezoito) escolas estaduais na Bahia (não contabilizamos municipais e particulares, outros patrimônios públicos e nome de outros familiares) É evidente a apropriação do espaço público pelo interesse privado e a utilização como “marketing” do nome familiar em um projeto de permanência hereditária nos espaços de poder. Dessa forma, podemos perguntar: Qual o interesse da Família Magalhães em se estabelecer em nomes de escolas? A permanência do nome de famílias tradicionais da política em espaços públicos contribui para o processo de apagamento da memória histórica de professores e sujeitos negros?
No dia 7 de dezembro, dias antes das críticas dos políticos do DEM às portarias do Governo Estadual, o Blog da Feira publicou notícia relatando que os moradores da comunidade quilombola de Matinha dos Pretos desejavam alterar a denominação da escola que leva o nome de uma representante da elite feirense filha da deputada estadual Eliana Boaventura para homenagear a professora Pulquéria de Freitas Araújo Serra, que se dedicou ao ensino de diversas gerações do lugar. O desejo de mudança do nome demonstra que as demandas da comunidade rural de Matinha, composta por pessoas negras, difere dos interesses políticos particulares de uma família com tradição na política local e sugere que o apagamento de sujeitos da educação não está desvinculado da questão racial e das tensões provocadas pelas relações de poder dentro de um processo histórico permanente.
Conforme apontou José Arapiraca (1988, p.75) “No Brasil, especialmente na Bahia, o bem comum é também utilizado para perpetuar poderes de oligarquias, através da utilização da denominação do patrimônio com nomes de políticos e de seus “leais”.” Em sua pesquisa Arapiraca observou que em todo o estado da Bahia 289 escolas tinham nomes de políticos, notadamente de Governadores e Secretários de Educação, enquanto apenas 105 receberam o nome de educadores, “vultos oficiais” e escritores. Dessa forma, sujeitos não pertencentes aos grupos detentores de poder político e econômico são silenciados em detrimento da visibilidade e notoriedade construída de uma camada social branca e elitizada. As famílias aristocráticas tendem a manipular a denominação do patrimônio público em interesse próprio e/ou da sua agremiação, com a finalidade de se perpetuar no poder e propagar sua percepção ideológica através do estado.
As denominações de escolas que se referem a políticos não possuem caráter popular e nem representatividade para a população baiana que é, em sua maioria, negra. Por que não prestigiar homens e mulheres letrados pertencentes à chamada “gente de cor”, e/ou os sujeitos que tiveram participação notável na educação durante o processo de lutas pelo fim da abolição e na implementação de ideais e projetos “nacionais” para a construção do país? Apontamos a importância de visibilizar a trajetória e contribuição de professores negros não apenas pela denominação dos espaços públicos como lugares de memória, mas, também, através da historiografia construída com o conhecimento recém-aportado pelas pesquisas acadêmicas que se referem à participação de professores negros para além dos limites da escravidão.
Resgatar a memória e a história de negros que atuaram na educação no século XIX e início do século XX contribui para a valorização da história da profissão docente e para uma representatividade positiva do conhecimento das diferentes contribuições da população negra nas escolas
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REFERÊNCIAS
ARAPIRACA, José. Fisiologismo político e qualidade de educação. Salvador, Ianamá, Cadernos de Educação Política. 1988, 132p.
BARROS, Surya Aaronovich Pombo de. História da educação da população negra: entre silenciamento e resistência. Pensar a Educação em Revista. Ano 3, v.4, n.1 Jan-Mar/2018. p.3-29
CRUZ, Mariléia dos Santos. A produção da invisibilidade intelectual do professor negro Nascimento Moraes na história literária maranhense, no início do século XX. Revista Brasileira de História. São Paulo, 2016.
EDITORIAL. Democratas reagem a mudança de nome de escolas que homenageavam família Magalhães. Bocao News. Salvador. Quinta-feira, 24 de Dezembro de 2020. Disponível em: <<https://www.bnews.com.br/noticias/politica/educacao/291256,democratas-reagem-a-mudanca-de-nome-de-escolas-que-homenageavam-familia-magalhaes.html>>
EDITORIAL. Matinha quer mudar nome da Escola para professora Pulquéria. Blog da Feira. Feira de Santana. Segunda-feira, 7 de dezembro de 2020. Disponível em: <<https://blogdafeira.com.br/home/2020/12/07/matinha-quer-mudar-nome-da-escola-para-professora-pulqueria/>>. Acesso em: 08 Jan. 2021
FONSECA, Marcus Vinícius. A arte de construir o invisível: o negro na historiografia educacional brasileira. Revista Brasileira de História da Educação, n. 13, pp. 11-50, jan-abr, 2007.
MENEZES, Jaci Maria Ferraz de – Igualdad,y libertad, pluralismo y ciudadania: El acceso a La educación de negros y mestizos em Bahia, tese defendida na Universidade Católica de Córdoba, Argentina, 1997.